Ficheiro de citações bibliográficas sobre a obra de Fernando Pessoa

Vida

«O Campos whitmaniano cantou a vida por bebedeira. As suas sensações desenfreadas, a sua emotividade pânica jamais passaram da esfera da inteligência: «Orgia intelectual de sentir a vida!».Intelectual, apesar do rótulo de sensacionista, a poesia de Campos é-o tanto como a de Caeiro. Justifica-a o desejo de afogar o tédio, de suprimir pela embriaguês a dor de viver, «angústia no fundo de todos os prazeres», a «saciedade antecipada na asa de todas as chávenas» - expressões da «Passagem das Horas». «Vale a pena sentir para ao menos deixar de sentir». Campos sentiu como Whitman para deixar de sentir como Campos. Mas o tour de force malogrou-se: depois de 1916, Campos virá a ser o poeta do cansaço, da abulia, do vazio, inquieto e nauseado.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 67.

Ver Campos sensacionista

Viajar

*
«A partida, real ou metafórica, (tomar uma decisão qualquer é também partir), põe-nos o mistério frente a frente, injecta-nos "o medo ancestral" do desconhecido; o que fazemos é definitivo, irremediável, porque "nunca se volta", ao regressar seremos outros e outro o lugar donde partimos. Daí o desprezo, misturado de inveja, por aqueles que não experimentam isto, os bons burgueses embotados que "não sentem o que há de morte em toda a partida, / de mistério em toda a chegada, / de horrível em todo o novo...". A poesia da viagem transforma-se na grave poesia do cais, carregada de sonho e sentido. Campos prefere ficar no cais, vendo os paquetes que entram e saem do Tejo, meditando no "mistério alegre e triste de quem chega e parte". Campos prefere ficar no cais, [...] transpondo o cais em que está para a esfera dos símbolos, visionando um "Cais absoluto", fora do espaço e do tempo, donde viemos porventura quando nascemos, onde também haverá gente anónima que sofre o mistério de partir e de chegar. O símbolo é comum ao Pessoa ortónimo; também este fica para sempre num cais metafórico [...]
De novo o tédio envolve o poeta, crucificado na monotonia dum existir ocioso. O espectáculo da própria inércia, os sonhos malbaratados, a inconsequência de tudo fazem-no odiar-se a si próprio, ser grotesco, rei de opereta, «palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro...»»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 125-126.
* Almada Negreiros (gare marítima da Rocha do Conde de Óbidos).

Ultimatum

«A grande peça deste número único do Portugal Futurista, ao pé da qual tudo o resto parece esquálido e sem cor, incluindo as palavras provocantes de Almada, é o Ultimatum de Álvaro de Campos. Não é uma obra-prima. Este texto combativo é um texto extremamente anti-social, agressivo, quase monstruoso, com a sua patente falta de unidade de tom. Começa como um panfleto e acaba em profissão de fé. Abre com um ataque de cólera e fecha com um impulso de esperança fervorosa. Entre os dois, uma longa dissertação num estilo demonstrativo, didáctico, cheio de «primeiro» e «segundo», «alínea a» e «alínea b», raciocínios lógicos e fórmulas algébricas. Mas não há dúvida de que isso veio também espontaneamente; e o autor tinha as suas razões para não polir o texto. Pessoa é capaz de, sob o nome de Bernardo Soares, escrever uma prosa maravilhosamente harmoniosa, sem nada que fira ou que ranja; mas aqui põe Campos a escrever à machadada e à martelada. Faz dele um pensador brutal, desajeitado e surdo, que ele nunca foi antes e nunca mais voltará a ser a esse ponto: um atleta do pensamento e do estilo. Como se verdadeiramente não houvesse sido ao próprio Campos, mas ao seu emissário - heterónimo do heterónimo - que ele tivesse desta vez confiado a pena - ou antes, o teclado (sabemos que Campos bate directamente os seus textos à máquina de escrever).»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 347-348.
Ver Super-homem

Unidade

«Acontece que a obra-vida de Pessoa tem uma tremenda unidade. Quem a quiser entender como obra de um blagueur, fica aquém do seu entendimento. Quem a procurar compreender na sua densidade críptica à luz de teorias, crenças e práticas mais ou menos ocultas - passa para lá da possibilidade de a alcançar.
Não é a nível das opiniões emitidas por Pessoa, ou por qualquer um dos seus outros, que se pode procurar o fio íntimo da coerência da obra mas sim numa atitude de fundo que, essa, está para além das manifestações, propositadamente várias, de uma personalidade que se quis poliédrica: a expressão lúdica de um temperamento «fundamentalmente religioso», como afirmou ser. Esse ludismo impediu-o de se tomar demasiado a sério nas manifestações da sua religiosidade e essa religiosidade deu sempre aos seus exercícios lúdicos um alcance de «ritual dramático». Foi assim que aquilo que chamo o romance-drama-em-gente saltou do espaço do profano (da brincadeira avulsa) para o do sagrado: é um «faz-de-conta» ritual a que Pessoa dedicou toda a sua vida e que até, de certo modo, foi a sua vida mais real.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, p. 56.

Tempo

«[...] o tema do fluir do tempo, expresso normalmente pelo símbolo do rio, é comum a Caeiro, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa.
Caeiro sabe que as bolas de sabão são "claras, inúteis e passageiras como a natureza"; pede à ave que passa que o ensine a passar; contenta-se hedonisticamente com "sentir a vida correr por ele como um rio por seu leito" e goza a constante mudança das coisas como fonte de variedade que é: «a Natureza de ontem não é Natureza. / O que foi não é nada, e lembrar é não ver».
Sem a calma olímpica do Mestre, Campos é nervoso e exclamativo: «Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!» repisa as palavras para sugerir o peso dos instantes que passam: «Parece que passam sem ver-me os instantes, / Mas passam sem que o seu passo seja leve...». Dirige-se ao rio como companheiro de viagem: «Água do rio, correndo suja e fria, / Eu passo como tu sem mais valer...». [...]
[...] Para Fernando Pessoa recordar não é reviver, é apenas verificar com dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial não é permitido recuperar. Vimos da sombra e vamos para a sombra. Só o presente é nosso, mas o que é o presente senão a linha ideal que separa o passado do futuro?»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 94-96

Teosofia

«Numa carta de 6 de Dezembro de 1915 a Sá-Carneiro, que ficou por acabar - o que explica ter sido encontrada - Pessoa explicava as circunstâncias que o tinham levado a interessar-se pelo ocultismo. Um editor de Lisboa queria criar uma «colecção teosófica e esotérica», composta no essencial por obras inglesas. Conhecendo a sua competência, confiou-lhe a respectiva tradução. Entre os autores a traduzir contavam-se nomeadamente Helena Blavatsky fundadora da escola teosófica contemporânea, e Annie Besant, que adquiriu mais tarde uma reputação universal ao descobrir e apadrinhar Krishnamurti. «Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de força, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Coisa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante».[...] Ora, se V. meditar que a teosofia é um sistema ultracristão - no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus - e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se, depois, reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento da minha grave crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo [...], atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental» [...]. É o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma...»»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 314-315.

Tédio

«O tédio, «ce monstre délicat» que Baudelaire ensinou a cantar, é o reverso duma fome de Absoluto que tudo contraria ironicamente. O desejo de viajar, correr mundo, renovar constantemente sensações, corresponde à necessidade de inebriar a alma insatisfeita de quem não encontra na vida motivo para viver. De facto, viajar, na imaginação do poeta, é "ser outro constantemente", "viver de ver somente", não pertencer nem a mim. O espectadorismo, o alhear-se de si, quadram à psicologia dum homem torturado pela auto-análise e inepto para a acção. Mesmo assim é preciso dar os primeiros passos, fazer as malas, subir a prancha... E tudo isso custa tanto! Qualquer coisa prega Fernando Pessoa ao lugar onde está; não o ter aí raízes, porque em toda a parte é um desenraizado; mas o medo de decidir-se, de comprometer-se, o apego ao que se tem, embora o que se tem seja tão pouco [...].»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 124

Supra-Camões

«E «fatalmente o Grande Poeta, que este movimento gerará, deslocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões». Tendo assim profetizado o aparecimento de um «supra-Camões», Pessoa termina por um acto de fé e uma aleluia. «Tenhamos a coragem de ir para aquela louca alegria[...]. Prepara-se em Portugal uma renascença extraordinária, um ressurgimento assombroso.»
Fizeram-se diversas leituras deste texto extravagante. Crespo sublinha-lhe a ironia com razão, mas parece ver aqui apenas uma farsa. Gaspar Simões entende-o como uma amplificação oratória do anúncio do Orpheu e do modernismo. A verdade é mais simples e mais louca. O imenso génio cuja chegada iminente Pessoa prevê, que fará sombra a quatro séculos de poesia portuguesa e através de quem Portugal se elevará, na ordem literária, à categoria das maiores nações do mundo, é sem dúvida ele, o jovem poeta desconhecido. Sem isso, o que escreve não faz qualquer sentido. Por vezes, como que por pudor, finge-se acreditar que ele se toma por um São João Baptista, clamando no deserto e preparando o caminho de Outro, maior, que há-de vir. Mas não, esse Outro é ele. Tudo o que se seguirá na sua obra vai mostrá-lo retrospectivamente, entranhado que está, desde o início, da certeza de ter uma missão sobre-humana a cumprir. Este artigo um pouco pesadão de 1912 é uma primeira mensagem», ao qual virá responder a Mensagem altaneira de 1934. Lido deste modo, ele assume uma grandeza singular.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 162-163.

Sociologia

«Um dos seus postulados é que os fenómenos políticos são de natureza social. A única ciência política possível é uma sociologia. Mas não existe sociologia moderna. «Tomando a imagem da química, podemos dizer que a ciência chamada sociologia está ainda no seu período alquímico. De forte e seguro, em matéria sociológica ou política, pouco temos [...] a não ser a «Política» de Aristóteles, fruto de toda a experiência política da Grécia antiga, e «O Príncipe», de Machiavelli, fruto de toda a experiência política da Renascença.» Assim, Pessoa vai ter de inventar um tipo de investigação que não será nem fundamental nem aplicada. «Não nos interessa - escusado será dizê-lo - senão aquela parte que é teoria [...], a teoria preliminar da acção.» Baseia esse estudo no princípio dialéctico da resistência e do movimento. Nas sociedades «progressivas», como são as sociedades europeias modernas, «o que é fundamental se resume em duas forças - uma que tende a fazer progredir, outra que tende a resistir ao progresso.» Ora, de uma maneira geral, «tudo quanto vive, vive em virtude do equilíbrio de duas forças - uma força de integração e uma força de desintegração.» Podem existir duas formas de desequilíbrio, dependendo de qual das duas forças se impuser à outra. A predominância das forças conservadoras traz consigo a «estagnação», a das forças progressivas provoca a anarquia. Mas as duas situações acabam por convergir: nos dois casos, há decadência, «perda de coesão e de vitalidade» e «desnacionalização» parcial.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 358-359.

Super-homem

«Ao abrir o caminho, o poeta compromete-se com ele. Ao invocar o super-homem, ele passa a sê-lo também. A consciência que Pessoa tem da sua própria grandeza, ele, o «Super-Camões», novo Shakespeare, reincarnação do «Encoberto» D. Sebastião, dá um tom de sinceridade comovente a este Ultimatum, justificando os seus excessos. A voz estridente de Campos, aquela voz que para Pessoa é uma maneira de se comprometer a fundo com a sua própria palavra, nunca mais se fará ouvir desta maneira, nem em verso nem em prosa, para nos chamar àquele excesso de humanidade que é o contrário do «humanismo» e do «humanitarismo». Mas talvez a amálgama dos textos escritos depois de 1917, que constituem a «obra» de Pessoa prosador, não seja mais que os «trocos» sensatos e modestos dessa mensagem inicial divulgada em altos brados. Para ele, também o Homem, tal como a nossa civilização judaico-cristã o fez, tem de ser ultrapassado. O Super-Homem será transpessoal - «Síntese-Soma», múltiplo e universal: é o programa de vida e de trabalho do poeta e do ensaísta, que se propõe pensar tudo «de todas as maneiras».
A conclusão deste Ultimatum lembra Nietzsche. Mas o Super-Homem de Campos é bem diferente de Zaratustra. Pessoa acusa Nietzsche de ser um falso pagão, um falso grego, um falso mediterrânico, um «Baco alemão», de ser, no fim de contas, um cristão que se ignora. Reconhece-lhe contudo uma forma de grandeza, a de ter afirmado «que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade». O que resta de romantismo no desejo de poder nietzschiano não é senão uma forma perversa do desejo de universalidade de Campos - e de Pessoa. Ser um denominador comum a todas as sensibilidades e a todos os pensamentos é, para ele, para eles, o meio de ultrapassar a natureza e a condição do homem.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 353-354.

Soares

«Bernardo Soares não é um verdadeiro heterónimo. Não é uma personalidade tão diferente de Pessoa «ele mesmo» como são Caeiro, Reis e Campos. O paradoxo, aliás, reside no facto de este homem cuja pena exala palavras geniais ser um medíocre. É um homem sem qualidades, a quem a vida parece ter limado as asperezas ou apagado os contornos: personagem não apenas sem máscara, mas sem rosto, diferente da personalidade «verdadeira» de Pessoa, não por transposição ou inversão, como Caeiro, nem por adição ou multiplicação, como Campos, mas por subtracção, esvaziamento, escavamento; como se tudo o que há no homem normal de convenção, de ilusão, de amor-próprio, nele tivesse sido retirado pelo ácido da consciência crítica. Soares não é um outro diferente de Pessoa, e também não é Pessoa; ele é o nada que Pessoa descobre em si mesmo quando pára de fingir.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 514-515.

Ver Fingimento

Sinceridade

«Entretanto, à medida que examinamos os inéditos, velhas perguntas se reavivam e novos problemas nos assaltam. Qual o grau de convicção dos textos doutrinários e críticos de Pessoa? O problema da sinceridade não será comum à prosa e à poesia? Uma visão parcial, a aceitação ingénua dum texto ou dum conjunto homogéneo de textos, é caminho ilusório: só uma visão de conjunto habilita (se é que habilita) a uma resposta válida. O que parece indiscutível é que também a prosa se nos oferece sob o signo da pluralidade, da diversidade. No concernente a determinados temas, Fernando Pessoa dá-nos tão fortes argumentos para demonstrar uma tese como para defender a tese contrária. O seu pensamento é ironicamente ambíguo.»
Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. XXII-XXIII

Sensacionismo

«É precisamente nestas páginas programáticas sobre o Sensacionismo que descobrimos a frase-chave para toda a obra de Fernando Pessoa, a explicação de todas as contradições, a solução de tantos enigmas: «Sentir tudo de todas as maneiras». Outra fórmula-chave repete: «Sê plural como o Universo!». Eis o programa da vida e da arte deste poeta. Com a ajuda destas duas frases podemos desfazer todas as contradições aparentes. O que foi, primordialmente, o impulso cego do seu temperamento de fingidor, tornou-se depois, através dos esforços da reflexão, o pensamento condutor da sua existência artístico-ideológica. Enternecedores nos parecem os conselhos do poeta aos seus companheiros para que sigam a sua esteira, multiplicando as suas personalidades em favor da expressão artística, quando, na verdade, o programa sensacionista fica, na sua substância, intransmissível e pessoalíssimo. Será um programa? Não será, antes, uma regra de comportamento: «Sentir tudo de todas as maneiras», i.e.: passar por tudo sem nunca se ligar a nada, ser tudo ao mesmo tempo e com a mesma legitimação: ser patriota ardente e indiferente perante a pátria e a religião, ser pagão e cristão gnóstico, defender a monarquia ideal e o princípio aristocrático e confessar-se liberal até à medula? Todas estas contradições se dissolvem se lermos atentamente as páginas sobre o Sensacionismo. Não estamos aqui perante uma perigosa relativização de todos os valores ? De certo modo, sim. Mas esta mudança contínua das posições intelectuais justifica-se por ser um método muito pessoal para criar uma nova expressão artística. «Brincar com as ideias» está na base do que podemos chamar o relativismo criador de Pessoa; ele examina todas as possibilidades espirituais da época para extrair delas os elementos para uma nova arte universal, nisso um parente longínquo de Gottfried Benn, seu contemporâneo (1886-1956), o maior poeta entre os expressionistas alemães, que pregou, por volta de 1925, um niilismo criador, fazendo tábua rasa dos valores consagrados para melhor acentuar a permanência eterna da obra de arte. Pessoa é, sem dúvida, um dos expoentes máximos da polivalência intelectual do nosso tempo, um Fausto moderno, procurando a chave para o mistério do ser, a quem nem sequer falta o pequeno pacto com satanás, assinado, por Alexander Search (o «Busca» dos poemas ingleses), com tinta em vez de sangue.»
Georg Rudolf Lind. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. XIV-XVI
Ver Campos sensacionista

Sentido

«Só por um fugaz optimismo o poeta admite que nos é possível entrever " o sentido / do que aqui está a esgarar".
Compreendemos agora o sentido das palavras de Campos, ao dizer que o seu mestre Caeiro lhe ensinou "a clareza da vista" mas não lhe ensinou, porque não podia, "a ter a alma com que a ver clara".
Campos: está doido a frio: conserva uma lucidez implacável até nos momentos em que no seu espírito parece haver centelhas dum lume desconhecido; chama impiedosamente embriaguez ou sonho às experiências em que a parte irracional do seu ser julga vislumbrar o oculto. Daí o drama da sua vida de pensamento, que foi a vida autêntica desse homem sem biografia.»
Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. ...

Sebastianismo

«As controvérsias sobre o Sebastianismo de Pessoa deixam sempre no grande público, e também, afinal no que, por oposição, teríamos que chamar «pequeno público» dos entendidos, a vaga impressão de que nesse campo teremos que admitir, sem discutir, as convicções que às vezes parecem de louco ou megalómano, e não são do domínio do racional. Como essa de acreditar que o Encoberto, o Desejado, o que traria para o Império Português a sua nova Idade de Ouro era, nem mais nem menos do que ele, Fernando Pessoa. Mas temos que nos lembrar que a vinda do Encoberto era apenas por ele encarada «no seu alto sentido simbólico» e não literal, como faziam os Sebastianistas tradicionais, de quem toma distância, e que esse Desejado não seria mais do que um «estimulador de almas». E que, mesmo assim, como ouvimos afirmar, apenas podia «compellir cada alma a, de facto, operar a sua própria salvação». Se tudo isto entendermos, sem esquecer que o Quinto Império era afinal «o Império Português, subordinado ao espírito definido pela língua portuguesa», não obedecendo nem «a fórmula política nem ideia religiosa», e que «Portugal, neste caso, quer dizer o Brasil» também perceberemos que o projecto de Pessoa era desmesurado, sim mas louco, não.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Lisboa: Livros Horizonte, 1993, pp. 33-34.

Search

«A obra de Alexander Search, que só agora começamos a descobrir, é o elo que faltava nesta evolução que leva do poeta clássico e romântico ao «modernista», da efusão sentimental ao lirismo crítico, da busca ansiosa do ego à despersonalização sistemática, da fé cristã perdida ao «paganismo» reencontrado. Ao lermos estes textos em verso e em prosa, todos evidentemente escritos em inglês, apercebemo-nos de que Pessoa, dos quinze aos vinte anos, situou na consciência semifictícia de Search e na sua obra, bem real, a experiência espiritual tempestuosa vivida nessa «curva da estrada» da sua vida de homem, essa luta com o Anjo cujo duplo (Alexander Search) sai por fim vencido, para que ele mesmo, Pessoa, possa tirar a sua satisfação e transpor um limiar, passar a uma outra etapa da sua iniciação poética. Search é a crisálida de Caeiro, de Reis e de Campos. Desta temporada no inferno, Pessoa surgirá, alguns anos depois, num estado de disponibilidade total que lhe permitirá acreditar, pelo menos provisoriamente, que obteve a salvação.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 105.

Saudosismo

«De início, Pessoa mantém-se afastado desta agitação intelectual: é desconhecido, ainda não publicou nada, tem poucos amigos. Mas segue de longe o que se faz, se diz e se escreve no círculo da «Renascença Portuguesa». Imagino-o a ler poemas e artigos que aparecem em A Águia ou noutras publicações, animado daquela paixão lúcida, crítica, com que acolhe as verdades novas. O saudosismo é para ele uma descoberta e uma confirmação. Entrando no patriotismo como numa religião, adere à «Renascença» como a uma Igreja cujo dogma é uma visão escatológica da história portuguesa. Mas o saudosismo de Pascoaes reforça também o seu desejo de, através da criação poética, chegar a uma superação das suas contradições, a uma fusão do sujeito e do objecto, a uma união ardente da «alma» e do corpo, ao desenvolvimento harmonioso do ser único na diversidade e ao repouso do múltiplo na união original».
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 154.

Salazarismo

«Como é que Pessoa, em 1933, terá acolhido a chegada do Estado Novo, e o que pensava ele de Salazar? É uma questão controversa. Ángel Crespo é categórico: desde o princípio que Pessoa recusou a ditadura. «O velho liberal que havia nele» não podia suportar a opressão. Exprimiu a sua oposição, de início em segredo, nas notas que redigia para si mesmo, e depois com os seus amigos, nas cartas e nas conversas, e finalmente em público. Alfredo Margarido é igualmente formal: Pessoa foi, desde o início, um partidário convicto da ditadura salazarista, cujos valores coincidiam com os que ele exaltara toda a sua vida, desde o ensaio sobre Carlyle ao poema a Sidónio Pais; segundo ele, só no início de 1935 (a partir do mês de Fevereiro) é que rompeu com o salazarismo e se tornou opositor do regime; os anos 1933-1934 são, pois, um período de colaboração com o poder.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 535.

Rosa-Cruz

«Durante anos, o poeta estudou os sistemas de iniciação das diferentes ordens existentes então ou no passado. Leu numerosas obras, tirou centenas de páginas de notas e redigiu em rascunho dezenas de fragmentos destinados aos seus quatro grandes tratados. Interessou-se particularmente por quatro ordens, que historicamente têm ligações entre si, tendo contudo cada uma a sua tradição própria: a Ordem do Templo; a Ordem de Cristo, que foi a sua herdeira em Portugal; a Fraternidade Rosa-Cruz; a Franco-Maçonaria. Foi, como vimos, pela Rosa-Cruz que começou o estudo do pensamento ocultista, quando, muito jovem ainda, leu um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz, cujo herói é um adolescente inspirado, Johan Valentin Andrea, que, no século XVII, escreveu As Núpcias Químicas de Christian Rosencreutz, livro fundador da doutrina. É dessa tradição que ele se vai sentir intelectualmente mais próximo, até ao fim. Mas interessou-se também apaixonadamente pela história dos Templários.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 498-499.

Romance-Drama

«O romance-drama foi concebido como uma terapia, individual e civilizacional. Como todos os meninos, Pessoa gostava de brincar aos médicos...
Campos fez o papel do «doente, - que ele, Pessoa, era: um esquema do punho de F. Pessoa o diz claramente . Para os curar (a ele e a todos os que fingem a dor que ele «deveras sente») inventou o Neopaganismo, com o seu teórico, Mora, o seu Mestre, Caeiro, e o seu coadjuvante Reis, pilares-mores desse templo. Para se tentar curar dessa doença de ser não só judeu mas cristão-novo, de mal com o seu corpo, fonte de pecado, e com o seu espírito, insone, confuso, indisciplinado, Pessoa deu à luz, catarticamente, Álvaro de Campos. Para se livrar do medo de enlouquecer como a avó paterna, Pessoa fez com que Campos enlouquecesse em seu lugar: pôs mesmo, catarticamente o dedo nessa ferida, nesse medo: «Cá está ela!» exclama Campos, num poema - «Tenho a loucura aqui, exactamente na cabeça!»
Através de Campos, de Reis, de Caeiro, Pessoa exorcizou os seus medos. Representou-os para deles se livrar, como diz nesta estrofe:
Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel de seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.
Nesse palco em que se tornou, fê-los viver em seu lugar essa vida e essa morte que igualmente o aterravam: porque Caeiro morreu em 1915 tuberculoso, se livrou do mal que vitimou o pai e o irmão pequeno e cujo fantasma o perseguiu a vida toda; porque Campos tocou com as próprias mãos o sítio da sua loucura, a ela pôde escapar; porque Reis e também Campos viveram com elegância amores homossexuais pôde livrar-se desse medo que confessa num diário íntimo. Através de Campos venceu o medo do outro, enquanto semelhante passivo ou interlocutor, e teve «gestos fora do seu corpo»: gestos e palavras obscenas mesmo, gestos e palavras de amor. Campos sentava-se à mesa de jantar de um quotidiano burguês com uma qualquer Daisy de que apenas sabemos que tocava piano, que tinha umas mãos cuidadas «postas com boas maneiras inglesas sobre a toalha». Também Campos fez as viagens de que Pessoa confessa ter pavor. E para exorcizar a morte, longamente a encena na pessoa desse judeu errante de si próprio, sempre com a mala na mão, no cais de uma qualquer viagem «física ou psíquica», na gare do Comboio Definitivo, direcção: «Lá bas, je ne sais où...»
Na pessoa de Caeiro tentou perder o medo do oculto, de todo o oculto de que o terror confessado das trovoadas era sinal apenas. Lembremo-lo quando atribui, no IV.º poema do «Guardador de Rebanhos», aos trovões e relâmpagos contorno de presenças quotidianas: «um pedregulho enorme», uma grande cabeça que diz «não» - e acrescenta «não, eu não tinha medo», como um menino que se gaba de já não temer o escuro.
Purgando-se do seu lastro de feridas e medos, o imaginamos na escalada para seres cada vez mais perfeitos, mais despojados das quotidianas penas: Campos, o que carrega todos os fardos e todas as feridas de Pessoa, no primeiro patamar; no segundo, Reis, o mestre-aluno de ensinar e aprender a serenidade dos deuses; e no último, entrevemos esse que foi criado para ser «uma infância e uma libertação»: Caeiro, claro.
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 180-181.
Ver Dramaturgo

Renascença Portuguesa

«...das palavras com que Teixeira de Pascoaes traçara o programa da Renascença Portuguesa, no artigo de abertura do primeiro número de A Águia, não podia depreender-se que a acção desta auspiciosa sociedade intelectual assentasse em bases muito solidamente pensadas. E se era verdade que, ao dizer: «O fim desta Revista, como órgão da Renascença Portuguesa, será, portanto, dar um sentido às energias intelectuais que a nossa Raça possui; isto é, colocá-las em condições de se tornarem fecundas, de poderem realizar o ideal que neste momento histórico abrasa todas as almas sinceramente portuguesas», acrescentando: «Criar um novo Portugal, ou, melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancando-a do túmulo onde a sepultaram alguns séculos de obscuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram» - ao exprimir-se assim, se era verdade que Pascoaes se integrava, lucidamente, num movimento de resgate que respondia, no plano intelectual, ao movimento de regeneração, iniciado, no plano político, com a revolução de 1910, já não oferecia contudo, para grandes esperanças a forma como expunha as bases morais e intelectuais em que decidira assentar a campanha que a Renascença Portuguesa resolvera levar a cabo através do seu órgão literário.»
João Gaspar Simões. Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de uma Geração. Lisboa: Bertrand, 1951, p. 157.

Religião

«O facto de Pessoa definir uma coisa - religião ou outra - como ficção não quer dizer que a considere falsa: «fingir é conhecer-se» afirmou pela boca de Campos num texto publicado em vida que é a chave de toda a sua arte, de toda a sua ciência, de toda a sua filosofia ó esses três sucedâneos a que recorreu quando, jovem revoltado, quis matar Deus e a Igreja Católica. Em sua substituição criou aquilo que chamou uma «religião individual» para que vai inventar rituais, um Profeta, um Mestre («o deus que faltava») com seus Discípulos e Evangelistas, como veremos.
As religiões tout-court aparecem-lhe como manifestações primárias da criatura humana, inferiores, portanto, porque o colectivo que representam «não analisa as ideias de que parte, mas as acceita», (como diz num texto inédito). «A metafísica começa com o espírito crítico» (afirma nesse mesmo texto). Mas acrescenta: «É fácil a metafísica passar para atitude religiosa. Muitas metafísicas não passam de religiões individuais.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, p. 62.

Reis - Niilismo

«A filosofia de Reis é um niilismo total. Ele repete incansavelmente, no mesmo tom desencantado, sem qualquer emoção aparente, sem qualquer tremura na voz, que o ser é apenas um clarão fugitivo à beira do nada.

«Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
          Da húmida terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
        Poente, porque não elas?
Somos contos contando contos, nada.»

Não somos nada, não temos nada, não fazemos nada que dure. A vida é um breve adiamento da morte. Reis tem uma consciência intensa da brevidade de tudo, da perpétua ameaça do tempo que corre, da fragilidade das nossas obras, que se desfazem em pó ou em fumo como os nossos corpos. Ele soube encontrar imagens grandiosas para cantar a inutilidade de tudo e o esquecimento, a miséria da condição do homem, sujeito ao destino e aos deuses.
[...] Esta visão niilista do mundo e da condição humana é o aspecto mais clássico e talvez mais banal da obra de Reis. Ela poder-lhe-ia inspirar um sentido trágico da vida, fazer dele um revoltado e um imprecador. Mas pelo contrário, ele baseia nesse pessimismo uma ética da aceitação total. Por uma via muito diferente da de Caeiro, ele vai também encontrar a única felicidade possível num «sim» dito à criação. Um «sim» mais ambíguo do que o do seu companheiro, mais carregado de dúvidas e de restrições mentais, sem nada da pretensa inocência do poeta bucólico. O que é mais original em Reis é essa estratégia de uma sabedoria paradoxal que situa a liberdade no coração da servidão e a alegria no coração da infelicidade de existir. Liberdade e alegria tomam a forma da «serenidade», a ataraxia dos Gregos: a imobilidade do eixo em volta do qual gira a roda do tempo.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 242-244.

Reis

«Como Caeiro seu mestre, aconselha a aceitar calmamente a ordem das coisas. [...] Ambos elogiam a magna quies do viver campestre, indiferentes ao social, convencidos de que a sabedoria está em gozar a vida pensando o menos possível. [...] Vai à conquista do prazer relativo, sempre toldado pela tristeza de saber que o é. O seu fito é iludir (melhor: eludir) a dor construindo virilmente o próprio destino no restrito âmbito de liberdade que lhe é dado.
Tudo o mais é inútil submissão voluntária a um destino involuntário.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p.23/25
Ver Epicurismo

Realidade

«Caeiro representa em Fernando Pessoa a "pavorosa ciência de ver", a exigência de positividade a que Pessoa obedece. Mas, enquanto, por um esforço sobre-humano, Caeiro postula que tudo neste mundo é objectivo, Pessoa, continuando a aceitar a realidade, acredita que tudo neste mundo é subjectivo. O nosso pensamento nasceu cego, embora saiba o que é ver. Decifra as formas pelo tacto, conjecturando-as como qualquer coisa cujo ser verdadeiro o mero apalpar envolve numa penumbra de erro. assim não pode ver as coisas mas apenas ter uma ideia mentirosa das coisas. (soneto 21) [...]
...estamos enclausurados, repartidos entre a aparência falsa acessível e a realidade inacessível. Daí... dor de viver (soneto 2)
...os fenómenos não passam dum grosseiro biombo (1)
Também Reis sofra com a vacuidade das coisas, o "decurso falso" dos dias, a "vastidão vã" do céu. Mas consola-se melhor ou pior com a filosofia de Caeiro: (1)
Fernando Pessoa, porém [...] se afirmou que a ciência, o sonho são inúteis, e o melhor é cingir a nós "a aparência absoluta da vida", vivê-la por fora, a verdade é que no íntimo não consegue escorraçar a inquietação, não confia na realidade fenomenológica [...]»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. ...

Quinto Império

«É evidente que Pessoa não inventou o Sebastianismo, encontrou-o na tradição portuguesa; mas, ao adoptá-lo, aprofundou-o e transfigurou-o. Sobretudo, uniu-o de uma forma pessoal ao outro grande mito tradicional português, o do Quinto Império. A ideia do Quinto Império vem de muito longe na mitologia judaico-cristã. Todos concordam em ver a sua origem no sonho de Nabucodonosor, contado no Livro de Daniel. O rei vê em sonhos uma estátua de dimensões prodigiosas: a cabeça é de ouro, o peito de prata, o ventre de bronze e os pés de barro misturado com ferro. De súbito, uma pedra bate no barro, o que faz com que toda a estátua venha abaixo; e a pedra transforma-se numa alta montanha que cobre a terra inteira. Daniel interpreta assim o sonho: o ouro representa o império da Babilónia, e a prata, o bronze e o barro misturado com o ferro significam os outros três impérios que irão suceder-lhe. Esses quatro impérios serão destruídos. A pedra que se transforma em montanha profetiza a vinda de um Quinto Império universal, que não terá fim.
[...] Para Pessoa, os quatro primeiros impérios já não são os da tradição, mas os quatro grandes momentos da civilização ocidental: a Grécia, a Roma antiga, o Cristianismo, a Europa do Renascimento e das Luzes. Já não se fala da Assíria nem da Pérsia, nem, aliás, do Egipto ou da China: o mundo é europeu. Mas, sobretudo, quando fala do Império vindouro, já não se trata de todo do exercício de um poder temporal, nem sequer espiritual, mas da irradiação do espírito universal, reflectido nas obras dos poetas e dos artistas. Ele condena a força armada, a conquista, a colonização, a evangelização, todas as formas de poder. O Quinto Império será «cultural», ou não será. E se diz, como Vieira, que o Império será português, isso significa que Portugal desempenhará um papel determinante na difusão dessa ideia apolínea e órfica do homem que toda a sua obra proclama. Um português como ele, homem sem qualidades, infinitamente aberto, menos marcado que os outros, tem mais vocação para a universalidade. Não há dúvidas de que acreditou que aquilo a que chama metaforicamente o Quinto Império se realizaria por ele e nele; é o sentido de um texto de 1925, em que afirma que «a segunda vinda» de D. Sebastião já se verificou, cumprindo a profecia do Bandarra, em 1888, data que marca «o início do reino do sol».»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 404-406.

Quimera

«Uma vez caído neste abismo de desalento, julgaríamos que o poeta só teria o refúgio da semi-inconsciência em que o tédio se adelgaça até quase não doer [...]. Mas a poesia de Fernando Pessoa tem outra face, esta heróica, em que se procura superar o tédio pela intuição dum destino supra-individual. É a poesia da Mensagem. Em Campos e na Mensagem surpreendemos a oscilação dum mesmo espírito entre a desistência e o sonho a que se chama fé. Campos vê na sua melancolia a melancolia de um povo que teve um Império e o perdeu, ficando sem objecto para a sua ânsia e até sem forças para desejar. «Pertenço a um género de Portugueses / Que depois de estar a Índia descoberta / Ficaram sem trabalho» [...].
A Índia que o poeta busca, bem o sabe, só há dentro dele. O Longe a que aspira não passa duma quimera: «Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve - / Em parte nenhuma, graças a Deus!» Mas se o poeta afirmar, num desafio quixotesco, a realidade da quimera? Porque não será mais real o que só existe dentro da alma?»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 127.

Presença

«Em 10 de Março de 1927 aparece em Coimbra o primeiro número de uma revista literária chamada a desempenhar um papel importante, não apenas na vida de Pessoa, mas também na história da literatura portuguesa contemporânea. Presença, «folha  de arte e de crítica», fundada e dirigida por rapazes muito novos (entre os vinte e os vinte e cinco anos), na sua maior parte ainda estudantes, revela, à distância do tempo, ser ao mesmo tempo uma reacção contra a literatura «vanguardista», cujo órgão fora o Orpheu, e, apesar disso, também a continuação, a herdeira ou a realização plena do movimento do Orpheu, e tanto que, nas histórias da literatura, toda a geração da Presença é etiquetada como o «segundo modernismo», sendo que o primeiro fora o de Pessoa e dos seus amigos em 1915. A nova revista não propõe, como o Orpheu, uma revolução estética, mas antes uma regeneração moral. [...]
Se existe um valor comum a todos os escritores do grupo da Presença, aliás muito pouco homogéneo, é o da pessoa humana - o que, segundo as palavras de Gide, deve fazer de cada um de nós «o mais insubstituível dos seres». O editorial do primeiro número da revista, que serve de manifesto do novo movimento, intitula-se Literatura Viva e reivindica essa espécie de personalismo «avant la lettre». Em arte, «é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe.» E este texto inaugural da Presença exige do escritor, antes de mais nada, a sinceridade, o que se opõe tanto ao academismo como à moda, ao espírito de imitação dos epígonos como às aventuras da vanguarda. Esta exigência parece contrariar a estética do Orpheu e de Pessoa, baseada no «fingimento» e na multiplicação do «eu». É, contudo, o chefe do novo movimento, José Régio, autor do editorial que citei, quem vai pela primeira vez absoluta reconhecer, por fim, a grandeza de Pessoa e, de certo modo, prestar-lhe vassalagem. E são os seus amigos João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro quem, tanto no fim da sua vida como após a sua morte, o salvarão definitivamente do esquecimento.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 460-462.

Precocidade

«Fernando, de uma precocidade excepcional, já com oito meses, segundo dizem, se interessava pelas letras do alfabeto. Tendo a mãe como única professora, sabia escrever com quatro anos. É deste período que data, ao que parece, o primeiro fenómeno de desdobramento da consciência que será o fulcro da sua obra. Este produz-se em duas etapas: o excesso de consciência de si mesmo e, depois, a dispersão do ego. Um poema de 1927 evoca a surpresa do rapazinho que, ao brincar com um brinquedo qualquer, descobre de repente que eu é Outro:
«Sentiu-se brincando
E disse, eu sou dois!
Há um a brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E o outro vê-me a ver...»
A outra etapa, um pouco mais tarde, com seis anos, é o aparecimento nele de outra personalidade diferente da sua, ou seja, do precursor dos «heterónimos», o Chevalier de Pas. «Escrevia cartas dele a mim mesmo», diria quarenta anos mais tarde com nostalgia. Este «herói dos seus seis anos» é francês, o que leva a supor que em criança já escrevia e falava bem a nossa língua, que lhe fora ensinada pela mãe. Este nome de «Pas» não é, aqui, o substantivo que designa o andar, e sim o advérbio de negação. Um niilismo destes tem qualquer coisa de assustador nesta idade.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 37-38.

Ver Escolaridade

Pré-Heterónimos


«O processo de dissociação iniciado na infância, e depois durante as férias em Lisboa e nos Açores, continua então, e torna-se mais complexo. É em 1903-1904 que aparecem novas «personalidades literárias», melhor caracterizadas do que as precedentes. Estes escritores, para dizer a verdade, têm no seu activo mais projectos do que realizações: será, até ao fim, um dos traços mais marcantes da personalidade de Pessoa, talvez a sua maior fraqueza: um jorrar incessante de ideias novas, sem que nenhuma delas tenha o tempo necessário para pousar no espaço limitado de um livro. Mas, enfim, de alguns destes precursores juvenis dos futuros heterónimos, ficaram vestígios suficientes para se ter uma ideia precisa das promessas que não mantiveram completamente.
Nem sempre é fácil identificá-los. De vez em quando muda-lhes o nome, ou então hesita entre dois deles para a atribuição de um poema ou de um texto em prosa. Contudo, sem demasiado risco de erro, podem identificar-se seis ou sete «personalidades literárias» que partilham com Pessoa «ele mesmo» o espaço da sua consciência criadora nesses anos cruciais. Pode-se deixar de lado James Faber, autor virtual de romances policiais (os únicos que interessam a Pessoa) e teórico da «literatura de mistério» inaugurada por Edgar Poe, e na altura ilustrada sobretudo por Conan Doyle. Charles James Search, especialista dos problemas de tradução que sempre preocuparam Pessoa, é apenas a sombra do irmão, Alexander Search, o mais fecundo e original de todos, o mais próximo de Pessoa, de quem é o duplo absoluto, nascido ficticiamente no mesmo dia que ele, 13 de Junho de 1888. Vamos reencontrá-lo depois de 1905 em Lisboa, para onde o seu demiurgo o levará consigo. É ainda o caso de Charles Robert Anon (abreviatura de «Anónimo»), que vimos entrar em polémica no jornal de Durban com o professor Haggard. Este é o mais cínico e o mais violento de toda a «coterie»: um energúmeno, que contrasta com o rapaz bem-educado que é o jovem Pessoa. Mas os seus textos mais significativos são posteriores ao regresso a Lisboa. Talvez ele prefigure Campos. A estes quatro pré-heterónimos ingleses, é preciso acrescentar Jean Seul, o primeiro, desde o Chevalier de Pas, a escrever em francês. Também este reencontraremos em Lisboa depois de 1905.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 73-74.



Política


«Logo depois da queda da Monarquia, Fernando Pessoa trabalha para um livro de história e teoria com o título de Da Ditadura à República isto é, da ditadura de João Franco à proclamação da República, abarcando expressamente o período entre 1906 e 1910. Logo a seguir, escreve bastantes textos para um trabalho que se intitularia Considerações Pós-Revolucionárias. Estas obras estão imbuídas, por um lado de censura à última época monárquica e ao franquismo, por outro lado de certa esperança na aurora republicana, não deixando no entanto de dirigir as suas primeiras críticas ao Governo Provisório e ao Partido Republicano.
Depressa se desilude porém da nova classe política e então as páginas contundentes que escreveu contra as figuras de proa daquele Partido, culminando com o projecto de um opúsculo violentamente polémico e satírico, que deveria chamar-se A Oligarquia das Bestas. Estes datam de 1915 e/ou 1916 tendo sido escritos provavelmente depois da ditadura de Pimenta de Castro.»
António Quadros. (Introdução a) Páginas de Pensamento Político - 1910-1919. Fernando Pessoa. Lisboa: Publ. Europa-América, 1986, p. 17.

Pluralidade


Afinal, na obra de Fernando Pessoa a insinceridade não constitui uma conquista: é uma premissa, uma imposição. «Hoje defendo uma cousa, amanhã outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei. Brincar com as ideias e com os sentimentos pareceu-me sempre o destino superiormente belo». O seu pensamento surge-nos equívoco, sem indiscutível autenticidade, a cada passo suspeitamos de que é o pensamento duma personagem de ficção, chame-se ela Alberto Caeiro ou Álvaro de Campos ou Fernando Pessoa ou ainda (à falta de nome que o subscreva) o mesmo Fernando Pessoa. Noutro inédito agora dado a lume, «Aspectos», decerto destinado ao tal prefácio duma edição de Obras Completas, de novo se afirma a indiferença, a não-adesão, a tudo quanto sente, pensa e escreve: «o autor destas linhas [...] nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramaticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade, suposta, que mais propriamente do que ele próprio pudesse ter esses sentimentos». Num terceiro papel inédito, lemos: «Quando falo com sinceridade, não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)».

Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. XXXIII-XXXIII

Pessoa


«O Pessoa ortónimo diverge muito de Caeiro e Reis porque não expõe uma filosofia prática, não inculca uma norma de comportamento: nele há quase apenas a expressão musical e subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma, de estados quase inefáveis em que se vislumbra por instantes "uma coisa linda", nostalgias dum bem perdido que não se sabe qual foi...[...]
Uma resignação dorida, agravada, de quem sofre a vida sendo incapaz de a viver....o seu estrutural anti-sentimentalismo, a ausência do biográfico na sua poesia a tendência para reduzir as circunstâncias humanas concretas a verdades gerais.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p.41

Personalidade


«Os vinte anos de Pessoa não são a sua melhor idade, e ele não se orgulha deles. Uma, parte dele tem muito mais que vinte anos; outra muito menos. Toda a vida terá de conduzir esta parelha desigual, de uma inteligência tão madura como se fosse já o velho que não. chegará a ser, e de um carácter por amadurecer, que nunca evoluirá. Alguns anos depois dirá: «Atravessei a vida como fantasma da minha própria vida, [...] gémeo da negação de mim mesmo.» Há nele desde sempre qualquer coisa de desfasado. Simplesmente, só começa a ter cada vez mais consciência disso à medida que avança na idade adulta. Daí as suas eternas queixas: «Nenhuma alma é mais amorável ou mais meiga do que a minha, nenhuma alma tão cheia de bondade, de compaixão, de todas as coisas da ternura e do amor. No entanto nenhuma alma está tão solitária como a minha - não solitária, note-se, por razões exteriores, mas por circunstâncias interiores. Quero dizer o seguinte: ao lado da minha grande ternura e bondade entrou no meu carácter um elemento do género inteiramente oposto, um elemento de tristeza, de egocentrismo, de egoísmo portanto, cujo efeito é duplo: o de deturpar e prejudicar o desenvolvimento e o pleno jogo interno daquelas outras qualidades, e o de prejudicar, afectando depressivamente a vontade, o seu pleno jogo externo a sua manifestação. Hei-de assinalar tudo isto um dia hei-de exprimir melhor, discriminar os elementos do meu carácter, já que a minha curiosidade por todas as coisas, ligada à minha curiosidade por mim próprio, conduz à tentativa de entender a minha personalidade». Eis como  Pessoa, aos vinte anos, em vez de se lançar na direcção dos outros, se esconde e se enovela no labirinto do seu ser. »
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 117-118.

Paùlismo


«Esta estética nova, que provoca o entusiasmo dos amigos do autor, é o que eles chamaram o «paulismo». Com efeito, o poema que o inaugura, escrito em 29 de Março de 1913, publicado somente no ano seguinte, mas que circulou imediatamente entre eles, Impressões do Crepúsculo, começa pela palavra «paúis», plural de «paúl», que significa pântano; [...]. O poema Paúis é de tradução difícil, e talvez, hoje, quase ilegível. É importante para a história literária e para a biografia do seu autor, transformando-o no chefe de um movimento que vai mudar a sensibilidade de toda uma época, mas não acrescenta nada de essencial à sua glória. Felizmente, no decurso do mesmo período, de Março a Dezembro de 1913, escreveu outros poemas, onde a mesma impressão fundamental - a de patinhar nos pântanos do ser, em vez de se lançar para a verdadeira vida - se exprime de uma forma muito menos alambicada. Em «Eis-me em mim absorto», em «Meus gestos não sou eu» ou no famoso «Ó sino da minha aldeia», o poeta renova o tema da saudade, essa nostalgia de não se sabe o quê tipicamente portuguesa, acentuando a consciência de si mesmo.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 184-185.

Paúis


«Uma coisa é preciso reter, contudo, deste esforço de Fernando Pessoa para se adaptar à estética da poesia por ele próprio proclamada a «nova poesia portuguesa». A originalidade de Paúis é incontestável. Eis uma composição inconfundível com as dos «saudosistas».
Distingue-se de todas as composições dos poetas contemporâneos de A Águia, quer «saudosistas» quer «lusitanistas». Nada existia, mesmo, então, na poesia portuguesa que lhe servisse de paradigma. Fernando Pessoa, no seu consciente esforço para se adaptar à estética que expusera, estética esta, realmente, em parte inspirada na obra dos principais «saudosistas», em parte intuída na sua própria presciência do que viria a ser, mais tarde ou mais cedo, a sua mesma poesia original, dera corpo a uma orientação poética que outros, que não ele, iriam superiormente cultivar.
Composta em Março de 1913, a poesia Paúis, posto que não tivesse sido publicada senão em Fevereiro do ano seguinte - data da estreia literária de Fernando Pessoa como poeta, apenas para «prendre date» talvez, como tantas vezes o aconselhara Mário de Sá-Carneiro -, logo se tornou famosa entre os poetas da roda da Brasileira e do Martinho. Sá-Carneiro, então em Paris, conhece-a, e no manuscrito da sua Dispersão, enviado para Lisboa ao próprio Fernando Pessoa quatro meses depois (Maio de 1914), já havia rasto do estilo literário que ela instituíra - o famoso «paùlismo».
Com efeito, Paúis está na origem da doutrina estética a que a gente do Orpheu veio a chamar «paùlismo». E o «paùlismo», autêntica intelectualização do «saudosismo», não pode deixar de considerar-se uma criação, até certo ponto involuntária, do mesmo Fernando Pessoa. De facto, o elemento intelectual que não comparecia na obra dos «saudosistas», todos emoção e instinto, é o traço distintivo do «paùlismo», pelo menos do «paùlismo» como o concebeu o cerebral cantor de Paúis.»

João Gaspar Simões. Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de uma Geração. Lisboa: Bertrand, 1951, pp. 207-208.

Pátria


«A Pátria de Fernando Pessoa, objecto como dissemos da paixão de toda a sua vida, é uma Pátria ideal. Mais: é uma Pátria mítica, não no sentido positivista do mito como uma mentira poética, mas no sentido transcendental do mito como uma narrativa teleológica em que os fins últimos estão no princípio, assim como o princípio contém já os fins últimos. O que funda uma nacionalidade não é, nesta acepção pessoana, um complexo de causas vindas de trás, económicas políticas, aquilo a que Aristóteles chamou a causa eficiente, mas um telos ou uma finalidade dada desde logo no mito, na profecia ou na revelação, isto é, aquilo a que o mesmo filósofo chamou a causa final.»
António Quadros. (Introdução a) Páginas de Pensamento Político - 1910-1919. Fernando Pessoa. Lisboa: Publ. Europa-América, 1986, p. 20.

Paganismo


«No concernente a determinados temas, Fernando Pessoa dá-nos tão fortes argumentos para demonstrar uma tese como para defender a tese contrária. O seu pensamento é ironicamente ambíguo.
Uma das constantes definidoras desse pensamento é o anticristianismo (ou, como prefere dizer o poeta, «anticristismo»). Alguns fragmentos insertos no presente volume elucidam-nos sobre o propósito de constituir com os heterónimos e Fernando Pessoa ortónimo uma escola pagã. Mais: o propósito de, através de escritos ortónimos e heterónimos, em prosa e verso, restaurar o paganismo autêntico. Todavia ainda aqui observamos uma cisão: a escola pagã inventada por Fernando Pessoa compreende individualidades com posições mentais diversas, em que se matiza o paganismo ou o «anticristismo».
Abrange, com efeito, dois ramos: um deles, o ortodoxo, representado por Alberto Caeiro e o doutrinário António Mora, considerando o cristianismo «produto da decadência romana», «mera heresia pagã», propõe-se a reconstrução total do paganismo; o outro, a que pertence Fernando Pessoa «ele próprio», aceita como inextirpável a sensibilidade moderna, em que vê o resultado mórbido da religião cristã; «assim, em vez de aspirar a, ou julgar mesmo possível, uma reimplantação do paganismo, julga que o paganismo serve apenas para base eterna da nossa civilização, devendo porém servir de disciplina às emoções criadas pelo cristismo». (As perguntas, à margem dos fragmentos, fervilham. Quais as fontes do anticristianismo de Pessoa? Quais as fontes do seu conhecimento e concepção do paganismo ? Em que medida os poetas heterónimos obedecem a um programa inicial, por vago que fosse? Ou até que ponto o plano da «escola pagã» na poesia e no pensamento nacionais se conforma já, lucidamente, à realidade inelutável, insofismável, dos poetas heterónimos aparecidos no palco interior de Pessoa?)»
Jacinto do Prado Coelho. Prefácio a Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966, p. XXII-XXIII

Outro


«O poeta estranha-se a si próprio: «Meu ser / tornou-se-me estranho». O pretenso eu afigura-se-lhe multíplice, fragmentário, infinidade de estados psíquicos, «simples colecção de momentos», na expressão de Proust. Daí a sensação, não de viver, mas de sofrer passivamente a vida, como
«Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim.»
Na poesia ortónima, Pessoa chega a pensar que não passa de ponto de convergência de vários tempos-seres, de tal modo se sente vivido pelo tempo: «Um dilatado e múrmuro momento / De tempos-seres de quem sou o viver?». E Soares julga-se o palco de sonhos independentes dele, cousificados, que lhe surgem de fora «como o eléctrico que dá a volta na curva extrema da rua...»
Quando tentamos reconstituir por dentro o passado, topamos dolorosamente com o vazio. O nosso "alguém" é "diverso e sucessivo". Campos fala do outro, daquele que foi vinte anos atrás, como dum desconhecido; diverte-se a imaginar as duas figuras só por ironia com o mesmo nome - o Campos antigo e o moderno -, cruzando-se na rua e olhando-se com indiferença.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 97-98

Ophélia


«No estudo que se segue à sua edição de 1978 das Cartas de Amor, David Mourão-Ferreira atribui a responsabilidade do fracasso desta aventura amorosa à presença e à intervenção constantes de Álvaro de Campos. Chega ao ponto de sugerir que o par Ofélia-Fernando era na realidade uma relação a três. Esta situação é muito mais perceptível na ligação de 1929-1930. A tragédia, para Ofélia, é que tem de lidar com uma personalidade dupla, da qual ama a face clara, identificada com o próprio Pessoa, e teme e detesta a face obscura, identificada com Campos. E, para Pessoa, a tragédia consiste em estar dilacerado entre um desejo desincarnado, platónico ou angélico, como o do Alexander Search da sua juventude («We would have no sex, would feel no love»), e um desejo sado-masoquista-pedófilo (Ofélia, com quase trinta anos, pequena e miudinha, tem ainda um lado «menineiro»), semelhante ao do pirata da Ode Marítima («o apetite quasi do paladar, do saque / Da chacina inútil de mulheres e de crianças»). A tragédia - e aqui reside sem dúvida o fundo das coisas - é que Campos, ainda há pouco um satélite da consciência de Pessoa, parece ser o centro dessa consciência, como se o ortónimo se tivesse tornado num heterónimo do seu heterónimo.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 477-478.

Olisipo


«Apesar da falta de apoio dos seus sócios, esforça-se tanto que, no início de 1921, algumas semanas após o rompimento com Ophélia, consegue instalar na Baixa, na Rua da Assunção, os escritórios da sociedade Olisipo, «Agentes, Organizadores e Editores». Já há clientes: menciona-se, por exemplo, um negócio de venda de minérios raros; o contrato envolve um montante considerável: mas não se sabe se se fez a transacção. De qualquer modo, o que interessa mais ao novo empresário é a casa editora, para a qual tem grandes projectos: quer publicar autores portugueses contemporâneos mas também clássicos estrangeiros, a começar por aqueles de que gosta mais, Shakespeare e Poe, que tenciona ser ele próprio a traduzir. Enquanto espera, vai editar as suas próprias obras. Seria de esperar que publicasse uma recolha de poemas ortónimos, já suficientemente numerosos na época para formar um Cancioneiro, ou então revelasse ao público Caeiro e Reis, ainda inéditos. Mas não, escolhe para publicação pela «Olisipo» dois volumes de poemas ingleses, estranhamente numerados English Poems I, II (que contém a versão definitiva de Antinous e as Inscriptions ainda inéditas) e English Poems III (Epithalamium). Saem do prelo em 1921, e vão ter poucos leitores.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 382.

Ocultismo vs Paganismo


«Enquanto Reis e Mora, seguindo o seu mestre Caeiro, tentam elaborar uma teoria do paganismo, o próprio Pessoa começa a repensar a religião da sua infância à luz das doutrinas que acaba de descobrir. Depressa se desligará da teosofia propriamente dita, demasiado dogmática para seu gosto. Em contrapartida, o seu interesse pela tradição Rosa-Cruz, e depois pelos rituais da Ordem do Templo, vai reforçar-se cada vez mais, até ao fim. Tudo isso, juntamente com a prática do espiritismo em que o iniciou a tia Anica, da astrologia para a qual o seu guia parece ter sido Augusto Ferreira Gomes, e da numerologia, de que lhe fala um outro amigo, Fernando de Lacerda, se insere num mesmo domínio pelo qual muitos outros intelectuais e escritores europeus do seu tempo também se interessaram, de Ouspensky e Gurdjieff a Daumal e Breton. «Há mais coisas à face da terra e no céu do que sonha a nossa filosofia.»
[...] Nada parece mais oposto ao paganismo de Caeiro, Reis e Mora, religião imanente de um mundo finito, do que o ocultismo, «religião-filosofia» transcendente de um mundo infinito. Na carta a Sá-Carneiro, vemos que Pessoa pretende subordinar o ocultismo ao paganismo, como um caso particular de uma forma de pensamento universal. É o que Reis faz com o cristianismo, caso particular do paganismo antigo: Cristo é «mais um deus» no panteão; um deus que, a falar verdade, «faltava» lá. À medida que for progredindo nos seus estudos esotéricos e que for tendo mais consciência de passar do estatuto de «neófito» ao de «adepto», ele vai renunciar a essa ilusão de um sincretismo e procurará, pelo contrário, o que faz a especificidade desse imenso domínio que nunca mais cessará de explorar até morrer.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 315-316.

Obras

«Pessoa não escreveu livros como habitualmente os escritores escrevem: respondendo a solicitações editoriais ou levando a cabo, por sua conta e risco, uma determinada obra previamente planeada. Pessoa ia-se escrevendo - por assim dizer - ao longo da sua vida, porque era isso a sua mais vital respiração. Mesmo quando era movido pelo impulso de publicar, respondendo ao circunstancial estímulo de intervir na vida cultural dessa pátria-língua-portuguesa de que tinha escolhido ser cidadão, acabava as mais das vezes por meter os escritos na arca, esmagado pelos obstáculos do real quotidiano. Pessoa nunca empreendeu escrever um livro como quem se põe a construir uma obra, de alvenaria ou de papel, de que se faz, depois, registo de propriedade. Escrevia-se, estilhaçadamente, ao sabor da inspiração e na pessoa desses «outros» em que ao longo da vida se desdobrou. [...]
Exprimir-se, no dia a dia, ao sabor da diversidade desses «pessoas» pelos quais se sentia mais do que repartido, multiplicado, era abandonar-se a um tropismo aparentemente desagregador mas que, afinal, o conduzia à unidade do Ser.
«Alma errante», de si próprio «viandante» - como disse - a sua vida que foi a sua obra -como também disse - passou-se viajando de texto para texto, de pessoa para pessoa. Dessa «alma errante» escreveu, no mesmo poema, que era «uma canção de viagem». Essa «viagem» pelo mundo de que se considerou «hóspede e peregrino» só acabou mesmo quando chegou o tal «Comboio Definitivo» de que fala Álvaro de Campos. Só então o microcosmos que é a obra pessoana ficou, de facto, concluído. A palavra «Fim» só mesmo a mão da Morte a podia escrever nessa obra-vida.
Ficou assim para quem cá ficou a descomunal tarefa de se haver com as passagens soltas da «canção de viagem» que pela vida foi trauteando, com mais aflição que alegria. Concluída essa vida-obra, é inevitável procurar a sua unidade para a poder entender, isto é, fruir, em todo o seu alcance.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Lisboa: Livros Horizonte, 1993, pp. 17-18.

Obra-Vida

«Conhecer a vida do homem que foi Pessoa não nos desvia da sua obra, bem pelo contrário No seu caso, ainda mais do que em outros, a vida explica a obra como a obra explica a vida. Elas contêm-se mutuamente. Falou-se da sua «obra-vida» O poeta não quis, como certos estetas, fazer da sua existência uma obra de arte; escolheu, sim, pô-la em cena na sua obra, concebida como uma vasta peça de teatro em que os heterónimos contracenam com ele e entre si. Esta obra é simultaneamente o testemunho da sua vida destroçada e a sua transfiguração. Não conheço vida de escritor que tenha sido tão falhada; e também nenhuma conheço que tenha sido tão transfigurada pela arte.
João Gaspar Simões (1903-1983) foi um dos jovens escritores de Coimbra que redescobriram Pessoa no final da década de 20 e o salvaram definitivamente do esquecimento. Foi por vezes censurado por não ter compreendido a grandeza do génio do poeta de que se tornara discípulo. Mas a verdade é que foi ele quem, de todos os seus próximos, mais fez pela sua glória. O seu livro Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de Uma Geração, publicado em 1950, é um monumento. Também eu fui por vezes tentado a sorrir ao ler as suas análises de um freudismo um pouco elementar (apetece dizer: «meu caro Watson»): para Gaspar Simões, o traumatismo afectivo provocado na criança de sete anos pelo novo casamento da mãe explica tudo. Eu inclinava-me mais para a opinião de Jacinto do Prado Coelho: a inquietação metafísica não está reservada aos órfãos de pai cuja mãe se casa outra vez, e o génio poético também não.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 17-18.

Obra dramática

«A partir de 1914, ano do nascimento dos heterónimos, Pessoa passou a classificar-se de autor de tipo dramático e a apontar, para esclarecer, o exemplo de Shakespeare: «Isso (a obra dos heterónimos) - escrevia em 19.1.1915 - é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele. [...] Não é Shakespeare, talvez, o maior poeta de todos os tempos, pois não me parece possível antepôr alguém a Homero; mas é o maior 'expressor' que houve no mundo, o mais insincero de quantos poetas tem havido, sendo por isso mesmo que exprimia com igual relevo todos os modos de ser e de sentir, e com igual alma vivia os diversos tipos psíquicos - verdades gerais 'humanas'- em cuja expressão se empenhou.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 183-4

Ver Dramaturgo

O Último Sortilégio

«O Último Sortilégio é a confissão-encantamento de uma feiticeira que renuncia à sua arte para renascer sob outra forma e com outra vocação. Neste sentido, o poema prolonga a Abdicação de 1913 e anuncia os grandes textos em verso e em prosa sobre a iniciação que datam dos anos 1932-1933. É, segundo diz Pessoa, «uma interpretação dramática da «magia da transgressão».» O primeiro passo, na via que o poeta decide encetar na busca da verdade oculta, é essa tabula rasa, ou essa metanóia: tem de despojar-se de si mesmo para se tornar o seu próprio ser original e universal.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 490-491.

Obra

«Pessoa não escreveu livros como habitualmente os escritores escrevem: respondendo a solicitações editoriais ou levando a cabo, por sua conta e risco, uma determinada obra previamente planeada. Pessoa ia-se escrevendo - por assim dizer - ao longo da sua vida, porque era isso a sua mais vital respiração. Mesmo quando era movido pelo impulso de publicar, respondendo ao circunstancial estímulo de intervir na vida cultural desta pátria-língua-portuguesa de que tinha escolhido ser cidadão, acabava as mais das vezes por meter os escritos na arca, esmagado pelos obstáculos do real quotidiano. Pessoa nunca empreendeu escrever um livro como quem se põe a construir uma obra, de alvenaria ou de papel, de que se faz, depois, registo de propriedade. Escrevia, estilhaçadamente, ao sabor da inspiração e na pessoa desses «outros» em que ao longo da vida se desdobrou.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Lisboa: Horizonte, 1993, p.17

O Marinheiro

«Bastaram a Pessoa dois dias, 11 e 12 de Setembro de 1913, para escrever O Marinheiro, «drama estático» em prosa, que ilustra perfeitamente a sua teoria de «teatro de almas» e se distingue de toda a produção dramática contemporânea. Propô-lo a Álvaro Pinto para A Águia. Não é de espantar que o director da revista «saudosista» não tenha entendido nada. A sua recusa de publicar a peça servirá de pretexto a Pessoa para romper com A Águia e com o movimento da «Renascença Portuguesa». O jovem autor dramático atribui tal importância a esta obra que é ela, mais do que qualquer outra em verso ou em prosa, que vai escolher para aparecer com o seu nome, dois anos depois, no primeiro número de Orpheu.[...]
O Marinheiro é antes de mais nada o espectáculo de um espaço não situado, de um não-lugar, lugar psíquico mais do que terrestre, como se estivéssemos dentro de um cérebro; e a sensação de um tempo fora do tempo, de um tempo suspenso, que não passa: o passado é irreal, o futuro proibido, o presente impossível, visto que desaparece gradualmente. Aquele lugar de onde a verdadeira vida está ausente e aquele tempo de uma espera sem esperança definem uma situação espiritual que, aqui, constitui a acção dramática. Ela assemelha-se à que é descrita em duas ou três peças, cujo parentesco com esta já foi sublinhado pelos críticos: uma, Les Aveugles, de Maeterlinck (1890), forneceu o modelo formal dessa acção dramática; a outra, A Espera de Godot ( 1953), parece ser uma réplica metafísica dela, embora Beckett não tenha por certo conhecido Pessoa.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 188-190.

O Banqueiro Anarquista

«O Banqueiro Anarquista  é uma dessas obras-primas de Pessoa que ainda estão por redescobrir, como o Marinheiro ou os Sonetos. Geralmente, vê-se nele uma demonstração de prestidigitação lógica e uma obra humorística, subavaliando-se o seu conteúdo, de ordem social e política. Este conto é perturbante, é certo, mas por outras razões que não a sua lógica absurda. É o mais original dos tratados sobre a liberdade. Obriga-nos a olhar de frente evidências escondidas. Se o Campos do Ultimatum filosofa às marteladas, o autor do Banqueiro, esse, pensa com uma luva de crina.
Este conto de algumas dezenas de páginas insere-se no género que Pessoa define como o «conto de raciocínio», herdado de Edgar Poe, que ele descobrira em Durban.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 383.

Nostalgia

«O Pessoa ortónimo diverge muito de Caeiro e Reis porque não expõe uma filosofia prática, não inculca uma norma de comportamento; nele há quase apenas a expressão musical e subtil do frio, do tédio e dos anseios da alma, de estados quase inefáveis em que se vislumbra por instantes "uma coisa linda", nostalgias dum bem perdido que não se sabe qual foi, oscilações quase imperceptíveis duma inteligência extremamente sensível, e até vivências tão que não vêm «à flor das frases e dos dias» mas se insinuam pela eufonia dos versos, pelas reticências de uma linguagem finíssima.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 41

Neopaganismo

«O Neopaganismo pretende ter um alcance civilizacional, embora seja concebido, bem à maneira pessoana, como uma ficção, «uma metafísica recreativa», que lhe fazia as vezes de religião - já que, como também disse num texto (que creio inédito), encimado pela designação «Teses fundamentais do Neopaganismo Português» - «não há profundo movimento nacional, movimento nacional profundamente renovador, que não seja um movimento cultural», assim como «não há profundo movimento cultural que não seja um movimento religioso». É assim que esse Quinto Império tão falado (que deveria suceder aos cristãos) seria... neopagão. O Messias que restabeleceria a grandeza perdida (não do domínio do ter mas do ser) seria, não o nevoento fantasma de D. Sebastião, mas esse Anticristo (que um rascunho do Ultimatum anuncia), essa Eterna Criança radiosa, como um sol de primavera: Alberto Caeiro.
O Neopaganismo tinha o seu Mestre e os seus discípulos - os Evangelistas que se puseram a difundir a sua «doutrina», cada um no seu género: António Mora como teórico em prosa (doutrinador e disciplinador), Ricardo Reis como o seu poeta. Estes os seus pilares, porque o próprio Campos se considerava e declarava pagão («por revolta», acrescentava), e Pessoa, na sua própria pessoa, outra coisa não fez ao longo da sua vida senão pugnar pelo exercício desse Espírito Crítico que rasgasse para a pátria-língua-portuguesa a aurora que anuncia no fim da Mensagem. »
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 77-78.

Morte

«O que acontece a seguir passou a fazer parte da lenda. A 29, pede papel e lápis. Escreve, num inglês pouco habitual: «I know not what tomorrow will bring». Esta folha de papel foi conservada, e podemos ver a inscrição reproduzida na Fotobiografia. No dia 30 à tarde, como acontece muitas vezes, há uma recuperação. O doente sente-se melhor. Mas logo o seu estado se agrava de novo. Pelas oito horas da noite, sente a impressão de que um véu lhe desceu sobre os olhos; segundo Gaspar Simões, terá pedido à enfermeira, ou a um amigo presente: «Dá-me os óculos». Se de facto as pronunciou, estas são as suas últimas palavras; e, tal como para as suas últimas palavras escritas, podemos dar-lhes uma interpretação simbólica e glosá-las indefinidamente. A sua última frase escrita, «Não sei o que amanhã trará», deixa sem resposta a questão de se saber se é a visão Caeiro, que postula o nada, ou a visão Rosa-Cruz, aberta a uma vida nova, que o acontecimento agora tão próximo vai certificar. As últimas palavras e o último gesto que elas pressupõem, a mão estendida para os óculos, para ver bem, lembram-nos Goethe: «mehr Licht», «mais luz!». Momentos depois, isto é, pelas vinte e trinta, morre, enfim, rodeado pelos médicos Jaime Neves e Alberto Carvalho e por uma enfermeira. Tão cedo: tem quarenta e sete anos.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 569.

Mora

*
«Regresso dos Deuses foi o título encarado para anunciar o que Mora chamará «metafísica nova e religião velha», e esteve para ser usado, como obra individual, ora por Mora ora por Ricardo Reis, sendo também encarado como uma série de publicações, espaço de «convívio» do «grupo» ó Campos colabora com as «Notas para a recordação...» - e de crítica dos «doentes» - assim chamados num destes planos . Neste texto, posterior às turbulências modernistas e, aparentemente, à morte de Sá-Carneiro (em 1916), o que parece ser uma obra em vários tomos contaria com um quinto volume que reuniria, sob a designação de «doentes», «Saudosismo. Interseccionismo. Sensacionismo». Um último tomo é assim anunciado: «Princípios fundamentais (as teorias de «Na c[asa] de s[aúde] de Cascais»)».
O facto de António Mora não ter desencadeado o interesse dos exegetas pessoanos deve-se, talvez, ao facto desse «autor» aparecer desligado de um suporte concreto. Caeiro é o Guardador de Rebanhos, Reis o «bebedor tranquilo», Campos o Engenheiro Sensacionista, Soares o pacato manga-de-alpaca da Baixa lisboeta. E Mora, que escreveu, contudo, muito mais páginas que as de Reis e Caeiro juntas, é um nome sem cara, assinando este ou aquele trecho de prosa, exprimindo esta ou aquela opinião. Sabe-se que é um pagão, mas, à míngua de elementos sobre suas feições e porte, não o vemos (verbo usado pelo próprio Pessoa, na carta a Casais Monteiro, quando começa a descrever os seus Heterónimos). Pessoa deixou, contudo, escondido no fundo da arca de uma ficção inédita, «Na Casa de saúde de Cascais», um retrato «à la minuta» de António Mora.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 189-190.
* Miguel Yeco

Modernismo

«Campos apresenta-se logo de início como o vate da era industrial, da violência da vida e do expressionismo mais concreto. Virando as costas à antiguidade de que Reis é o grande apaixonado, ele pretende ser resolutamente moderno. À beleza apolínea ele opõe a beleza dionisíaca, a que os surrealistas em breve chamarão «convulsiva». À suspensão do julgamento e à recusa de qualquer compromisso com o real, ele prefere o compromisso total no espaço e no tempo; ele quer «viver ao extremo», conhecer «o estado supremo da vertigem», e, acima de tudo - será essa a sua divisa -, «sentir tudo de todas as maneiras». Mas esta embriaguez de viver é ambígua: a luz é «dolorosa», ele «range os dentes»; viver é uma doença que arranca o ser a esta morte que é a existência quotidiana.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 252.

Ver Futurismo

Missão

«Essa íntima convicção de que tinha contas a prestar à humanidade, em geral, ao país a que escolheu pertencer, em particular, e, em última instância, «a si-próprio futuro» - é uma constante dessa obra que lhe fez de vida. Outra constante é essa sua forma de se exprimir como poeta dramático. Também ao longo da sua existência nunca desmentiu o que de si escreveu na carta a Côrtes-Rodrigues de 19/1/1915: que era «fundamentalmente um espírito religioso». E por isso - explica nessa longa carta - se tinha desinteressado de toda a atitude literária que fosse pura blague, como o lançamento do Manifesto interseccionista, fruto de um «plebeísmo artístico insuportável de querer épater». Afirma: «Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.»
Essa «missão» tinha que ver com as suas responsabilidades como cidadão do mundo - «dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística» - e como cidadão português: «porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através do que eu consiga realizar.» E é muito significativo que «a obra Caeiro-Reis-Campos» (escreve) lhe apareça como dentro deste espírito, e não do outro, grosseiro, de blague, que confessa tê-lo animado noutras circunstâncias. Acrescenta, a propósito dessa «obra» múltipla: «Isso é tudo uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida, e que constitui uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas dos outros.» E acrescenta, mais adiante: ««Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, divino em todos os três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir.»
O génio é sentido como missão mas também como «maldição», num texto inédito, ainda em fase de rascunho, que parece ser uma evocação de Mário de Sá-Carneiro: «Tu regressaste ao Deus que te mandou/Sofrer a vida», escreve. E acrescenta, adiante: «... os deuses, em sua ira criadora/Lançam o génio como maldição» É um texto que começa em prosa e ganha asas em verso. Em prosa ainda, escreve: «O homem de génio tem emoções e desejos de deus, com corpo e alma de homem - daí a sua angústia eterna.»
Noutro texto (inédito, creio) em que parece meditar sobre a sua própria condição, escreve: «Uns nascem grandes, outros alcançam a grandeza e outros têem que ser grandes à força».»
Teresa Rita Lopes. Pessoa por Conhecer - Roteiro para uma expedição. Lisboa: Estampa, 1990, pp. 57-58.

Mensagem

«Mensagem é, como Fausto e o Livro do Desassossego, a obra de quase toda uma vida. O poema mais antigo é datado de 21 de Julho de 1913 e o mais recente de 26 de Março de 1934. A diferença está em que todas as outras obras, excepto The Mad Fiddler, que ficou inédito, ficaram por acabar. A Mensagem é o único livro que Pessoa compôs, terminou, reviu e corrigiu, e finalmente publicou. Este livrinho de algumas dezenas de páginas é o mais importante e o mais representativo do seu génio singular. Se, de toda a sua produção multiforme, apenas se pudesse guardar uma única obra, seria com certeza esta, que a posteridade, cumprindo a profecia do jovem crítico de A Águia em 1912, acabou por reconhecer como um dos dois cumes da poesia portuguesa, sendo o outro Os Lusíadas.
Vimos que, no dia em que escreveu Gládio, que vai passar a chamar-se D. Fernando, Infante de Portugal  o poeta ainda não concebera o conjunto em que o poema se iria integrar. Parece que a ideia de um livro de poemas de inspiração nacional, centrado sobre os heróis da época das Descobertas, lhe terá vindo ao espírito na época «sidonista», em 1917-1918. É então que escreve a sequência de poemas publicados em revista em 1922 sob o título de Mar Português, e que vai constituir a parte central do livro. Após um período de seis anos em que o projecto parece abandonado, escreve, entre Setembro e Dezembro de 1928, uma nova sequência de poemas que, na sua maioria, serão integrados na primeira parte, e alguns na terceira e última. Ainda escreve alguns desses poemas entre 1929 e 1933. É provável que, durante todos esses anos, o projecto tenha amadurecido no seu espírito e que se tenha pouco a pouco afirmado o seu carácter original, que é o de unir numa mesma inspiração a exaltação do sentimento nacional, os mitos do Sebastianismo e do Quinto Império, o espírito da gnose e da tradição iniciática, em suma, a totalidade do que constitui a «visão Rosa-Cruz». Já em 1932, na sua carta a Gaspar Sirnões, ele fala de «Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo)» como de um livro «quase pronto». Podemos contudo supor que é apenas entre Janeiro e Março de 1934 que concebe definitivamente a estrutura global que faz deste conjunto de elementos diversos um todo perfeitamente coerente. Escreve ou reescreve então um certo número de poemas. E é ainda mais tarde, quase no último momento, que decide mudar de título, a pretexto de que «o nome da nossa Pátria» estava então «prostituído e com os pés feridos», mas na verdade, sem dúvida, para melhor salientar que a epopeia da salvação nacional é, em sentido figurado, a aventura da salvação da alma pessoal: este livro épico e mítico é antes de mais espiritualista e místico.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, pp. 541-542.

Mãe


«Bernardo Soares, o suposto autor do Livro do Desassossego, escreve no seu diário: «Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...» Ora, sabemos bem que foi o pai que Fernando perdeu, não à nascença mas com cinco anos. Na minha primeira leitura, acreditei numa transposição sem significado de maior, como muitas vezes fazem os romancistas: com efeito, há, como veremos, uma dimensão romanesca no Livro. Mas não. Esta anotação surpreendente ilustra o que se poderá ter passado naquele pequeno cérebro simultaneamente demasiado sensível e complicado para a sua idade. Esta execução simbólica da mãe - que morreu, na realidade, trinta anos mais tarde, e que ele adorou até ao fim significa efectivamente que teve consciência de ter sido ela que, nesse momento, ele perdeu para sempre. Num poema de 1926, O Menino da Sua Mãe, a transposição é ainda mais impressionante: desta vez, foi a mãe que perdeu o filho. O corpo de um jovem soldado, que lembra o Dormeur du val; «de balas trespassado», na erva, «jaz morto e arrefece». «Fita com olhar langue e cego os céus perdidos». Chamavam-lhe «o menino da sua mãe»: é o nome que Maria Madalena dava ao filho.»

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 38.

Lucidez

*
«Só por um fugaz optimismo o poeta admite que nos é possível entrever "o sentido / do que aqui está a esgarar". Fernando Pessoa, como ele diz em nome de Campos, está doido a frio: conserva uma lucidez implacável até nos momentos em que no seu espírito parece haver centelhas dum lume desconhecido; chama impiedosamente embriaguez ou sonho às experiências em que a parte irracional do seu ser julga vislumbrar o oculto. Daí o drama da sua vida de pensamento, que foi a vida autêntica desse homem sem biografia. [...] Compreendemos agora o sentido das palavras de Campos, ao dizer que o seu mestre Caeiro lhe ensinou "a clareza da vista" mas não lhe ensinou, porque não podia, "a ter a alma com que a ver clara". Caeiro representa em Fernando Pessoa a "pavorosa ciência de ver", a exigência de positividade a que Pessoa obedece. Mas, enquanto, por um esforço sobre-humano, Caeiro postula que tudo neste mundo é objectivo, Pessoa, continuando a aceitar a realidade, acredita que tudo neste mundo é subjectivo. Fica assim confinado aos sonhos, à ilusão, à mentira da subjectividade, pois não confere (Caeiro não lho permite) valor objectivo ao conteúdo das suas intuições.»
Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 86-87.
* Gaudenzio Nazario. Tudo transcende tudo. 1994.

Louco

*
«A imagem do louco genial tem-se instalado no espírito não só do grande público mas até dos exegetas. Não é meu intuito - não estaria para isso habilitada nem isto me parece, aliás, o problema fulcral - estudar o caso «patológico» ou não, de Fernando Pessoa. O que importa, parece-me, é contrariar essa perspectiva instalada de um ser que produziu caoticamente, ao sabor das vozes e dos impulsos da sua loucura ou das vozes por que se sentia habitado, uma obra fragmentária, sem unidade possível.
Ao contrário do que alguns exegetas pretendem, tomando ao pé da letra afirmações que Pessoa faz - sobretudo pela voz dos seus outros, de Soares, em particular - o poeta não é apenas esse grande vazio, a mesinha de pé de galo de que as vozes que hospeda em si se servem para se exprimir. «Coração de ninguém» será, na medida em que um coração palpita e assegura, enquanto funciona, a vida do ser que comanda. A aparente disparidade dos fragmentos que constituem a obra pessoana tem a irrigá-la esse «coração», «de ninguém», embora, mas único, de todos, e a organizá-la a unidade de um só sistema circulatório.»
Teresa Rita Lopes. Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. Lisboa: Livros Horizonte, 1993, p. 34.
* Cruzeiro Seixas, Estudo para mesa de mármore.

Livro do Desassossego - fases

«Vimos que o Livro do Desassossego foi escrito em duas fases entre si bastante distanciadas da vida de Fernando Pessoa: a primeira principalmente em 1913, com alguns prolongamentos até 1916 e 1917; e a segunda basicamente entre 1929-1930 e 1934-1935. Alguns textos intermediários não prejudicam, por escassos em relação aos dois conjuntos, esta dicotomia.
Entre as duas fases há consideráveis diferenças qualitativas. A primeira é muito literária, dentro de uma imaginação simbolista e decadentista, tendo quase todos os textos um título. São peças em geral independentes, com uma grande preocupação esteticista. Nesta fase, o Livro ainda tem um único autor, o próprio Fernando Pessoa. Quanto à segunda fase, é diarística, coloquial, são as "confissões" de Bernardo Soares, personagem de ficção, posto que o autor não se assume como Fernando Pessoa-ele próprio, mas como uma sua mutilação: sou eu, menos o raciocínio e afectividade. Melhor dito: é Pessoa, mas com outro tipo de raciocínio e uma outra maneira de afectividade».
António Quadros (org.). Livro do Desassossego por Bernardo Soares - 1ª parte. Fernando Pessoa. Lisboa: Publ. Europa-América, 1986, p. 38.

Livro do Desassossego

*
«Não tendo sido composto nem acabado, o Livro do Desassossego é, para todo o sempre, um «work in progress». Há todo um mundo entre os nobres devaneios de Na Floresta do Alheamento e a aspereza de certas análises ulteriores que desmistificam os preconceitos e as ilusões. Começado como uma recolha de ensaios e de textos poéticos em prosa assinados pelo próprio Pessoa, o Livro torna-se em seguida um jornal íntimo inicialmente atribuído a Vicente Guedes, e depois, bastante cedo, a um outro semi-heterónimo, Bernardo Soares, «ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa» (é assim que ele é apresentado nas revistas em 1929-1932), que para nós fica a ser o seu «autor» definitivo. Mas, também muito cedo, esse diário entrecortado de ensaios adquire um carácter romanesco, na medida em que o narrador, suposto autor, o é por uma ficção análoga à de todos os romances de análise redigidos na primeira pessoa, frequentes na tradição francesa. Por fim, o romance-diário tem também uma dimensão «dramática», visto que Soares, como Caeiro, Reis, Campos e os diversos poetas ortónimos (lírico, ocultista, inglês), é um dos personagens deste «Teatro do Ser» que é o conjunto da Obra.»
Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 513.
* Jorge Guerra. Fotografia, 1994.